Defensor público não pode substituir advogado ausente em audiência

13/04/2016 13/04/2016 15:40 367 visualizações

Questão tormentosa e rotineira para o defensor público que labuta perante as varas criminais são os incessantes pedidos formulados pelo Juízo para que realize e acompanhe uma audiência, na qual, em que pese existente advogado constituído, esse não comparece, mas também não justifica a sua ausência, e, tampouco, há notícia de renúncia nos autos.

Duas situações ainda daí podem surgir: o defensor público acompanha apenas aquele ato ou, diante o princípio da concentração, adotado pela reforma de 2008 no Código de Processo Penal (CPP), no caso dos procedimentos, acompanha a audiência de instrução e julgamento, com a tomada dos depoimentos das testemunhas e interrogatório do acusado, inclusive.

A inviabilidade e a impossibilidade de tal atuação encontram diversas razões. Sabe-se que na garantia humana e constitucional da ampla defesa encontra-se embutido o direito de o acusado escolher quem realmente exercitará o seu direito de defesa, não sendo obrigado a optar por defesa patrocinada pela Defensoria Pública, mas por defensor de sua livre escolha e confiança.

Sendo assim, constituído defensor pelo acusado, ainda que não comparecente para o ato processual designado, inviável o pleito para que o defensor público lhe substitua. É certo que o artigo 265 do CPP, introduzido também pelas reformas pontuais de 2008, aduz para o fato de que o defensor não poderá abandonar o processo, salvo por motivo imperioso, comunicado previamente ao juiz, sob pena de multa e demais sanções cabíveis. Os parágrafos do referido dispositivo legal dão conta da possibilidade de o defensor requerer pelo adiamento da audiência caso não possa comparecer, o que autoriza a legislação, se existente motivo justificado. Por outro lado, informa o mesmo dispositivo legal que se não provar o impedimento o defensor até a abertura da audiência, o juiz não adiará o ato e nomeará defensor substituto.

Ocorre que esse defensor substituto não se poderá dar na pessoa do defensor público, aliás, ainda que de 2008 a legislação referida, insta salientar que destoa a mesma do plano constitucional, na medida em que viola a ampla defesa, permitindo que ainda que seja apenas para um determinado ato processual, defensor outro que não o constituído pelo acusado exerça a sua defesa, sem que para tanto tenha acesso aos autos com tempo hábil a formulação de defesa efetiva.

Penso que a questão se insere na dificuldade de compreensão e de reconhecimento da Defensoria Pública enquanto instituição permanente e autônoma que é; essencial à função jurisdicional do Estado, que tem por incumbência, como expressão e instrumento de efetivação do regime democrático, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos, e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma gratuita e integral, vejam bem, aos necessitados, assim considerados na forma do artigo 5º, inciso LXXIV, da CF. Tal é a redação do artigo 1º da LC 80/94, redação conforme a LC 132/2009 e reformas constitucionais.

A prestação dessa orientação e defesa é integral, portanto, não parcial ou precária, como na hipótese, descumprindo a nomeação da Defensoria Pública pelo juízo como substituta de um defensor particular. Aqui, Caio Paiva já trabalhou muito bem em outra coluna, da impossibilidade de atuação conjunta do defensor público com o constituído, mormente, e, na medida em que seus objetivos e funções encontram ancoragem constitucional, cumprindo-lhe por instituição autônoma que é a aferição da sua atuação legítima e legal.

Tal situação nos parece inclusive ensejar locupletamento ilícito por parte de particular em detrimento do Estado, já que a Defensoria é instituição pública, cuja manutenção orçamentária se dá por recursos públicos, por certo. E nem se fale na possibilidade de fixação de honorários em favor da Defensoria Pública nesse caso, pois quem arcará com o pagamento destes: o defensor ausente? O acusado?

Ainda que assim não o fosse, o fato é que é objetivo da Defensoria Pública, nos termos da LC 80/94, em seu artigo 3º-A, a afirmação do Estado Democrático de Direito, a prevalência e a efetividade dos direitos humanos e a garantia dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, a qual restaria evidentemente prejudicada, pois flagrante a necessidade de tempo e estudo do processo para se preparar uma defesa devidamente efetiva.

O artigo 8.2, ‘c’, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, traz como garantia judicial o direito humano de o acusado contar com tempo e meios necessários à preparação da sua defesa. Veja, qual é mesmo um dos objetivos da Defensoria Pública, antes referido? Dar prevalência e efetividade aos direitos humanos. Estaremos fazendo isso com essa atuação? Penso que sequer a fixação de honorários supre essa ilegalidade.

Além disso, a razão de ser da Defensoria Pública não é a de tapar furos, data vênia. A ordem constitucional de 1988, enquanto cláusula pétrea confere à Defensoria Pública a prestação de assistência jurídica a pessoas em situação de vulnerabilidade, e, de acordo com Kettermann, “sendo o modelo adotado pelo Brasil o público, só haverá efetivo respeito ao comando constitucional quando o serviço for prestado por esta Instituição, que deve estar organizada na forma preconizada pela Lei Complementar 80/94. Esta Lei, fundamental para o pleno exercício de direitos pelas pessoas necessitadas, representou verdadeiro divisor de águas na história da Defensoria Pública nacional, porque desenhou com mais concretude o que, afinal, era a Defensoria Pública, e estabeleceu um Norte estrategicamente pensado para fazer dela o que pretendia não só o legislador constitucional originário, mas sobretudo o povo multivulnerável do nosso país.” [1]

Não por menos, Rocha ao discorrer sobre os princípios institucionais da Defensoria Pública: a unidade, indivisibilidade e a independência funcional; será enfática ao afirmar: “o membro da Defensoria Pública enquanto órgão de execução da instituição una não pode agir individualmente ao alvedrio da instituição, ele não é advogado, não age em seu próprio nome, é órgão de execução da Defensoria e deve obediência a seus princípios, funções e objetivos institucionais.” Salienta mais adiante, inclusive, que não pode o agente invocar sequer a independência funcional como razão para afastamento dos princípios, objetivos e funções institucionais, “já que, repita-se, a identidade não é pessoal, é institucional.” E essas funções institucionais, de acordo com a autora, “são os meios e caminhos possíveis e necessários para a concretização do acesso ao que é justo pelas pessoas em condição de vulnerabilidade.” [2]

Por outro lado, sabe-se que a defesa técnica é indispensável no processo penal, sob pena de nulidade, vide nesse sentido a Súmula 523 do STF e diversos artigos ao longo do próprio código. Dessa forma, como proceder a uma defesa efetiva acaso desconhecida a estratégia do defensor constituído, ou melhor, sem análise prévia do processado? Aliás, aos pefensores públicos é assegurada a prerrogativa de prévia intimação pessoal com acesso aos autos! E isso tudo, quanto mais, quando única audiência de instrução, com formação da prova diante o Juiz competente para julgamento do caso penal!

Aliás, o que talvez esteja por detrás disso tudo, mais do que o não reconhecimento da Defensoria Pública enquanto instituição que o é, ou o desconhecimento das suas reais funções e objetivos, é o desprezo pela defesa, em verdadeira afronta a paridade de armas. A mentalidade inquisitória é a que permeia as cabeças, seja dos componentes do sistema de justiça criminal, sejam da sociedade como um todo.

Não por menos sabemos que o modelo inquisitório está alicerçado na figura do chamado Juiz Inquisidor, cuja centralização de papéis em uma única pessoa, alcança, inclusive, a gestão quase que autônoma da prova. Nesse sentido, Carvalho expõe: “Em sua forma jurídico-penal, o sistema inquisitório se estrutura em economia de poder cujo protagonismo é exercido pelo magistrado. A relação que se estabelece entre julgador e julgado é estruturante, pois traça os limites de atuação dos sujeitos processuais. Aliás, todos os demais atores desta cena processual são coadjuvantes, detentores de papéis secundários, pois a resolução do caso se vincula fundamentalmente à técnica do magistrado em descobrir a verdade que o acusado é o exclusivo detentor. O poder, portanto, é altamente concentrado e direcionado exclusivamente contra o suspeito-acusado-réu.” [3]

Conforme já referi em outra oportunidade,[4] de acordo com Souza, o próprio enfoque do acesso à justiça deve ser modificado quando transportado para o Direito Penal e Processual Penal. Para além do acesso igualitário aos tribunais, independentemente da situação econômica das partes, no que tange a Defensoria Pública, deve se ultrapassar a visão de um serviço público eficiente e acessível a toda população, na medida em que, na seara do direito criminal, salvo exceções, os cidadãos pobres não pedem uma prestação jurisdicional, não acionam o Poder Judiciário, contrariamente, são acionados por este Poder, figurando ordinariamente no polo passivo da pretensão acusatória.

Dessa forma, aponta Souza,[5] acompanhando a realidade atual do processo penal no Brasil, que não é a de resolução alternativa dos conflitos, mas, sim, de utilização maciça do direito penal e dos procedimentos criminais como forma de controle social, há necessidade de o acesso à justiça nessa esfera alcançar o seu aspecto mais substancial e importante que é o acesso a uma ordem jurídica justa, a uma decisão judicial livre, imparcial e desinteressada e criteriosa, com atenção ao asseguramento de todos os direitos e garantias fundamentais ao imputado.

Nesse ponto, penso, portanto, que cumpre a todos os defensores públicos a negativa de realização de qualquer ato processual em processo onde figura advogado constituído, nesses termos antes referidos, pois tal atuação viola os princípios institucionais, as funções e objetivos da própria Defensoria Pública, além de prejudicar sobremaneira a defesa do acusado.

Essa é uma luta constante de todos os defensores e defensoras públicas do país, de mais do que afirmação e reconhecimento da instituição, enquanto instituição de Estado, de defesa intransigente dos direitos humanos fundamentais, ainda que isso custe um alto preço a pagar na labuta diária, e sei que os defensores e defensoras entenderão o que digo, mas penso que essa é a maior diferença e nobreza do ato de defensorar: a incessante e muitas vezes incansável luta por direitos!

Mariana Py Muniz Cappellari - Defensora Pública do RS e professora. Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (2013), especialista em Ciências Penais pela PUC-RS (2010) e especialista em Direito Privado pela Unisinos (2014).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


1 KETTERMANN, Patrícia. Defensoria Pública. Coleção Para entender direito. 1ª ed. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2015.

2 ROCHA, Amélia Soares da. Defensoria Pública. Fundamentos, Organização e Funcionamento. São Paulo: Atlas, 2013.

3 CARVALHO, Salo de. O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

4 CAPPELLARI, Mariana Py Muniz. Os Direitos Humanos na Execução Penal e o Papel da Organização dos Estados Americanos (OEA). Presídio Central de Porto Alegre, Masmorra do Século XXI. Porto Alegre: Núria Fabris, 2014.

5 Conforme aponta Fábio Luís Mariani de Souza in A Defensoria Pública e o Acesso à Justiça Penal (2011, p. 292): “(...) o acesso à justiça penal significa também, acesso a uma ordem jurídico-penal justa, ou seja, direito ao devido processo legal; direito a ser tratado como sujeito e não mero objeto da persecução penal; direito a ser tratado como inocente; direito à informação acerca da acusação e sobre todos os atos e formas processuais; direito a não auto-incriminação; direito ao contraditório e a ampla defesa; direito à Defensoria Pública devidamente estruturada; direito à assistência jurídica gratuita; direito de entrevistar-se reservadamente com o seu advogado (público ou privado); direito ao duplo grau de jurisdição; direito à preservação da imagem; direito de igualdade formal e material (paridade de armas); direito de respeito à dignidade humana; etc. Enfim: o acesso à Justiça penal, como demonstramos, se equivale ao direito a uma defesa criminal materialmente eficaz, e mais ainda, significa dar eficácia aos direitos fundamentais componentes do núcleo mínimo existencial na seara do direito penal e processual penal (...)”.